terça-feira, 5 de janeiro de 2016

5 - FOI ASSIM DE TODAS AS VEZES




Quando sinto frio, apenas mudo de direção e continuo nadando no rumo da praia. Chego e saio da água movendo-me com  gestos meio trôpegos, num solo firme que me exige outro tipo de coordenação motora.

Depois, esta chega aos poucos, junto com a suave ardência do sol na pele e, como uma leve surpresa,  com uma nova consciência do cheiro das coisas, lembrando-me tardiamente a falta que tudo isso me faz, sob as águas.
 
De todas as vezes é assim, e o meu pequeno espaço no mundo reorganiza-se lentamente, em função da nova realidade, numa rotina conhecida que sempre saboreio com prazer e sem pensar muito a respeito.

Ontem, curiosamente, este tipo de reorganização ocorreu bem longe dos mergulhos e da água,  e deixou-me a pensar que a mesma coisa deve, provavelmente, ocorrer em muitas outras situações que nem chego a notar.

Quando me sentei frente ao computador, a tentativa vã de fazê-lo funcionar relembrou-me da falta de energia. Por isso, peguei um punhado de folhas em branco e a minha caneta-tinteiro favorita, e dispus-me a encarar a alvura incólume do papel  com a simplicidade dos gestos de outros tempos, anteriores aos teclados e aos monitores.

Vi renovar-se a angústia daquele instante fantástico que ocorre quando já fizemos alguma coisa que queríamos, mas ainda não aconteceu nada em conseqüência. A vertigem do ato já iniciado, que ainda não produziu resultados. Vi renovarem-se as carícias trocadas entre os dedos e o corpo esbelto  da caneta, evidenciando  a latência duma sensualidade antiga e cúmplice, que não se perdeu nem quando vi que a tinta tinha secado, e a caneta não escrevia.

Abri-la, enchê-la e repô-la em condições de uso, demorou um pouquinho, durante o qual pude sentir cada um dos gestos que fazia, e o seu valor simbólico agigantando-se através do tempo.

Todos eles foram gestos que me acompanham desde há muitos anos, e  que se estendem sempre um pouco além da necessidade, num ritual particular que visa muito além da viabilização do simples ato da escrita.


Iniciei-os  um pouco trôpego, como ao saír da água depois de nadar e mergulhar muito tempo, levemente descoordenado e deselegante, mas foi por um instante só. 

Logo depois já me derramava com a vontade de sempre em linhas sem rasuras, que, inchadas de emoção, reconstruíram tardiamente uma vaga consciência da falta que tudo isto me faz quando uso o teclado e, ingrato,  nem sequer noto a ausência do crepitar da pena no papel, e desse cheiro tão especial que a escrita, afinal,  tem... Ah tem !...


( REVISADA EM 2009 )



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