Quando sinto
frio, apenas mudo de direção e continuo nadando no rumo da praia. Chego e saio
da água movendo-me com gestos meio
trôpegos, num solo firme que me exige outro tipo de coordenação motora.
Depois, esta
chega aos poucos, junto com a suave ardência do sol na pele e, como uma leve
surpresa, com uma nova consciência do
cheiro das coisas, lembrando-me tardiamente a falta que tudo isso me faz, sob
as águas.
De todas as
vezes é assim, e o meu pequeno espaço no mundo reorganiza-se lentamente, em
função da nova realidade, numa rotina conhecida que sempre saboreio com prazer
e sem pensar muito a respeito.
Ontem, curiosamente,
este tipo de reorganização ocorreu bem longe dos mergulhos e da água, e deixou-me a pensar que a mesma coisa deve,
provavelmente, ocorrer em muitas outras situações que nem chego a notar.
Quando me sentei
frente ao computador, a tentativa vã de fazê-lo funcionar relembrou-me da falta
de energia. Por isso, peguei um punhado de folhas em branco e a minha
caneta-tinteiro favorita, e dispus-me a encarar a alvura incólume do papel com a simplicidade dos gestos de outros
tempos, anteriores aos teclados e aos monitores.
Vi renovar-se a
angústia daquele instante fantástico que ocorre quando já fizemos alguma coisa
que queríamos, mas ainda não aconteceu nada em conseqüência. A vertigem do ato
já iniciado, que ainda não produziu resultados. Vi renovarem-se as carícias
trocadas entre os dedos e o corpo esbelto
da caneta, evidenciando a
latência duma sensualidade antiga e cúmplice, que não se perdeu nem quando vi
que a tinta tinha secado, e a caneta não escrevia.
Abri-la,
enchê-la e repô-la em condições de uso, demorou um pouquinho, durante o qual
pude sentir cada um dos gestos que fazia, e o seu valor simbólico
agigantando-se através do tempo.
Todos eles foram
gestos que me acompanham desde há muitos anos, e que se estendem sempre um pouco além da
necessidade, num ritual particular que visa muito além da viabilização do
simples ato da escrita.
Iniciei-os um pouco trôpego, como ao saír da água depois
de nadar e mergulhar muito tempo, levemente descoordenado e deselegante, mas
foi por um instante só.
Logo depois já me derramava com a vontade de sempre em
linhas sem rasuras, que, inchadas de emoção, reconstruíram tardiamente uma vaga
consciência da falta que tudo isto me faz quando uso o teclado e, ingrato, nem sequer noto a ausência do crepitar da pena
no papel, e desse cheiro tão especial que a escrita, afinal, tem... Ah tem !...
( REVISADA EM 2009 )
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