sábado, 3 de dezembro de 2016

8 - ESTE ANO QUE ACABA






Todos os anos escrevo um texto,  sem quaisquer pretensões literárias, mais ou menos por esta  época junto ao Natal. Claro que o aproveitamento que faço dele, depois, determina como o olho ou ele é lido por outros.

É assim uma espécie de ponderação sobre o ano que está já em vias de terminar, e que, normalmente, passou mais depressa do que eu esperava.  E que, ao passar tão depressa, nem me deu tempo de colocar em perspectiva as coisas que foram acontecendo.

Creio que isso acontece com todos, em maior ou menor grau.  Vamos sendo requisitados pelos detalhes exigentes e mínimos do dia a dia, e vamo-nos afastando da possibilidade de observar o conjunto maior, a grande imagem do que está acontecendo.

Isto, até que a noção de que estamos a ser empurrados dum lado para o outro se avoluma. E quando finalmente conseguimos uma pausa para reflectir, o que estava acontecendo já aconteceu. O que estava sendo, já foi. Porque o tempo, afinal, é isso mesmo. Só é nosso enquanto o vivemos. Quando o olhamos já é passado. E falando dele, fica até distante.

Mas eu gosto de ponderar sobre o meu tempo, tentar lembrar com a isenção possível como o foi que o gastei, e sobretudo com quem. E sempre que o faço, pensando a respeito, descubro curiosidades que me enriquecem e que muitas das vezes desmentem a sensação vaga que eu tinha de como havia sido o desenrolar do meu ano. E acabo, às vezes, por descobrir que, afinal, foi diferente. Este ano ainda em curso é um bom exemplo disso.
 
Não foi um ano diferente dos outros. Teve as suas alegrias e as suas tristezas. Amigos que partiram de vez, e outros que chegaram. Houve desafios superados, e outros que, de repente, surgiram vindos quase do nada. E tal como de outras vezes, voltei a achar bom ter superado os que superei, e ter assumido aqueles que assumi com o espírito firme de quem quer vencê-los.

Na vida e na minha escrita, as pessoas continuam a surpreender-me e a fascinar-me. E creio que não perdi  a capacidade de me iludir com elas,  ou de me desiludir. Mas sem dúvida são menos as coisas que faço ou deixo de fazer por estar iludido ou desiludido.

Ao contrário do que algumas pessoas parecem pensar, lidar de perto com a ficção e a fantasia, como faço na escrita, não é o mesmo que lidar com a ilusão. Fantasia, é uma coisa e ilusão é outra, bem distinta. E acredito que  cheguei a um ponto da minha existência em que me permito viver mais tolerante com a fantasia, e sendo menos tolerante com a ilusão.

Fantasio, imaginando um mundo melhor e mais bonito, onde seja melhor viver. Sinto isso com intensidade. Serve-me de base para escrever coisas que quero transmitir. E porque não ? É claro que não preciso iludir-me que isso vai acontecer, ou pelo menos acontecer com facilidade.

Isso não me coloca na situação de quem não tem ilusões, ou de quem já é um desiludido. Coloca-me, isso sim, na posição de quem tenta manter uma posição de lucidez, mesmo permitindo-se fantasiar. Porque não o faria ? Acaso deixaria de ajudar alguém apenas por saber que talvez não me ficasse grato? Jamais.

Acredito que cada um faz o que tem de fazer, e disso presta contas a si mesmo. E não que encontra o Céu ou o Inferno, mais tarde. Mas vendo a felicidade de uns e a infelicidade de outros, decidi acreditar que Céu e Inferno são aqui mesmo. E, em grande parte, resultado de escolhas nossas. Escolhamos ser felizes.

O ano corre para o fim, e o novo ano trará com ele soluções para problemas que ainda nem sabemos que temos. Alegrias que nem sequer sabemos ainda serem possíveis. Reconhecimento por coisas que ainda não fizemos. E junto virão momentos sofridos resultantes de escolhas erradas, muitas vezes nossas. E outras vezes serão de outros, mas que, injustamente, nos atingem. Virão coisas que eu gostaria que fossem diferentes, e que nem sequer sei o que são ainda.

Mas o meu ano está a chegar ao fim, tendo eu a convicção cada vez maior que o maravilhoso é isso mesmo: há em tudo o que aprendemos, em todas as escolhas que fazemos com aquilo que aprendemos, a possibilidade de influenciar o nosso futuro e o caminho que nos leva até ele.

E assim sendo, espero daqui a um ano, estar a escrever um novo texto com o qual evidencie algo que aprendi, ou algum caminho escolhido, e que, um dia ao reler-me, me sirva de memória. Até lá, Boas Festas.


copyrightHenriqueMendes/2016

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quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

7 - DAS PALAVRAS.




"As palavras são passos num rumo todo delas."


Das palavras:

Lembro-me de que costumava achar que traçavam os seus próprios caminhos.

Quantas vezes disse com elas tudo o que queria e, mesmo assim, ainda restou a sensação de que ficava quase tudo por dizer ?

Quantas vezes, de outra forma,  as achei tão pequenas, tão insuficientes para me revelarem, ou à intensidade do meu sentir?

Quantas vezes me traíram, transmitindo aos outros sentidos que nelas não punha,  e despertando reações totalmente insuspeitadas?

O tempo, entretanto,  acabou  por ensinar-me que se pode esperar tudo das palavras. Com elas, oscilamos entre as vias do entendimento e as duas traições mais clássicas que as palavras contêm:  - a de absolutamente não nos traduzirem, ou então, a de nos traduzirem bem, mas duma forma que os outros não entendem.

É claro que existem os virtuosos da palavra ! Capazes de sempre se fazerem traduzir por elas, não importa quais forem as circunstâncias. Ou até mesmo, como alguns políticos, virtuosos em tamanha profundidade que são capazes de nada dizerem, apesar do tanto que falam.

Há também quem use as palavras para uma espécie de jogo de cartas marcadas, com significados ocultos. Ou com significados tão remotos que,  em função de outras prioridades e valores, acabam perdendo a consistência, e só voltamos a lembrar-nos deles quando repentinamente, a talho de foice, nos perguntam:  “ - você lembra-se do que um dia eu te disse ?”  É então que a terra treme... 

Caio sempre que nem um perfeito pato, nesta situação.  E, nessa hora, vasculho nos cafundós do meu côco desprivilegiado e sempre descubro que sim, que essas palavras existiram. E pior...que foram um aviso que não tomei  suficientemente a sério, e que, por isso, rumei santamente na direção de uma perfeitamente evitável desgraça futura.

Há também os especialistas em criar palavras que parecem ter sido criadas só para nós, arremessadas como carícias deliciosas, ou, noutro enfoque, como vertiginosos golpes de espada.  

Em alguns casos mais extremos, isso chega a virar arte – quase um dom.  Raramente chega a ser visível que as mesmas palavras podem tocar a vários interlocutores com o mesmo sucesso, fazendo-os sentirem-se únicos.

Mas é também necessário tomar a defesa das palavras. Haverá algo mais singelamente belo ? Mais capaz de promover a comunicação, e o debate? Mais capaz de traduzir a beleza e o horror?  Mais eloqüente?


Podem ser qualquer coisa, as palavras. Mas não há como fugir delas. Mesmo das que parecem ser criadas só para nós.


( 2009 sem revisão )



terça-feira, 5 de janeiro de 2016

6 - É HOJE ! É HOJE !




Pioneiro como sempre, Portugal mandou-me os primeiros sinais. 

Dos amigos de lá,  comecei a receber mensagens agradecendo os parabéns e os votos de felicidades, mas corrigindo-me - apesar de gratos, claro...-  a pontaria, e relembrando que a data dos seus aniversários não era exatamente aquela que eu escolhera para lhes mostrar como gosto deles e me preocupo com as suas particularidades.

Embaraçado, porque é gente de quem gosto muito, lá me desculpei como pude, e lá fui anotando as novas datas naqueles papeizinhos que invariavelmente perco antes de transcrevê-los para a agenda.

Logo depois, os mais íntimos também deram sinal e foram aparecendo várias perguntas no estilo “ - Outra vez?!!! Você já me deu os parabéns em  Maio e em Setembro... Tá querendo que eu fique velho?!!!”.

A coisa agravava-se nitidamente. Foi então que apareceram uns negócios de ultimíssima  geração, todos na linha do Orkut, todos repletos de vantagens, novidades e valores agregados, que, entre outras coisas, prometiam funcionar como despertadores nas datas importantes do meu círculo de amizades, a que chamavam rede de amigos. E ainda apresentavam, todos eles, uma vantagem adicional: os meus amigos passavam a conhecer-se uns aos outros também, e de graça.

Ah, gente... estava mesmo de bom tamanho para um caso agudo de desorganização intrínseca, como o meu. Ainda mais sendo grátis... Subscrevi uma porção deles, é claro ! E com isso esparramei um monte de convites por toda a minha lista de endereços, sem me aperceber que o estava fazendo.

Quando descobri, achei até bom, porque logo comecei a receber avisos de datas de aniversário, mandei ( a medo, confesso...) os parabéns,  e pasmem : acertei nas datas. Fiquei até emocionado, sabem ?  Vocês podem achar que eu estou brincando, mas não estou não! Eu  melo facilmente, com estas pequenas coisas!

Entretanto, muitos daqueles amigos que convidei meio sem saber, subscreveram também. E como são meio exagerados ( tal como eu ) subscreveram ( tal como eu ) uma meia dúzia  desses serviços de rede de amigos. 

E ( tal como eu ) escreveram o seu nome de várias maneiras, em algumas delas usando iniciais, e noutras escrevendo o nome completo. E ninguém sabia que conspirava contra a minha recém-atingida tranqüilidade ( este troço leva trema? Hummm...será? )

Bom, a verdade é que o tempo passou, desde então, e voltaram as mensagens e os protestos dos amigos, e com eles os meus medos antigos de dar umas mancadas.

Começaram também a chegar umas mensagens de outros amigos que não conheço, informando-me que agora já posso comprar Viagra, online e baratíssimo, no maior segredo... E, já que falamos de segredo, aconselham-me também um extensor peniano que eu tenho até medo de saber o que é, mas que, decididamente, não usarei nunca...

Pior ainda:  agora recebo várias mensagens ao mesmo tempo, de diferentes origens, de diferentes redes de amigos, avisando-me que se aproxima uma mesma data.

Ontem, por exemplo, avisaram-me que o Antonio M’s faz aniversário hoje. Uma outra mensagem avisou-me que hoje se cumpria ( meio dramático, não é? “cumprir...” ) o aniversário de A. M. Santiago C., que pode ser qualquer um dos três que conheço em diferentes pontos do planeta...

Entretanto, nenhum destes avisos bate certo com as anotações ( esborratadas, por terem sido corrigidas várias vezes ) da minha velha agenda...

Assim sendo, eu pergunto: - que outra saída eu tinha, senão mandar parabéns aos quatro?!!!



P.S. – António, meu querido amigo,  se não for seu aniversário me perdoa. Mais uma vez...




5 - FOI ASSIM DE TODAS AS VEZES




Quando sinto frio, apenas mudo de direção e continuo nadando no rumo da praia. Chego e saio da água movendo-me com  gestos meio trôpegos, num solo firme que me exige outro tipo de coordenação motora.

Depois, esta chega aos poucos, junto com a suave ardência do sol na pele e, como uma leve surpresa,  com uma nova consciência do cheiro das coisas, lembrando-me tardiamente a falta que tudo isso me faz, sob as águas.
 
De todas as vezes é assim, e o meu pequeno espaço no mundo reorganiza-se lentamente, em função da nova realidade, numa rotina conhecida que sempre saboreio com prazer e sem pensar muito a respeito.

Ontem, curiosamente, este tipo de reorganização ocorreu bem longe dos mergulhos e da água,  e deixou-me a pensar que a mesma coisa deve, provavelmente, ocorrer em muitas outras situações que nem chego a notar.

Quando me sentei frente ao computador, a tentativa vã de fazê-lo funcionar relembrou-me da falta de energia. Por isso, peguei um punhado de folhas em branco e a minha caneta-tinteiro favorita, e dispus-me a encarar a alvura incólume do papel  com a simplicidade dos gestos de outros tempos, anteriores aos teclados e aos monitores.

Vi renovar-se a angústia daquele instante fantástico que ocorre quando já fizemos alguma coisa que queríamos, mas ainda não aconteceu nada em conseqüência. A vertigem do ato já iniciado, que ainda não produziu resultados. Vi renovarem-se as carícias trocadas entre os dedos e o corpo esbelto  da caneta, evidenciando  a latência duma sensualidade antiga e cúmplice, que não se perdeu nem quando vi que a tinta tinha secado, e a caneta não escrevia.

Abri-la, enchê-la e repô-la em condições de uso, demorou um pouquinho, durante o qual pude sentir cada um dos gestos que fazia, e o seu valor simbólico agigantando-se através do tempo.

Todos eles foram gestos que me acompanham desde há muitos anos, e  que se estendem sempre um pouco além da necessidade, num ritual particular que visa muito além da viabilização do simples ato da escrita.


Iniciei-os  um pouco trôpego, como ao saír da água depois de nadar e mergulhar muito tempo, levemente descoordenado e deselegante, mas foi por um instante só. 

Logo depois já me derramava com a vontade de sempre em linhas sem rasuras, que, inchadas de emoção, reconstruíram tardiamente uma vaga consciência da falta que tudo isto me faz quando uso o teclado e, ingrato,  nem sequer noto a ausência do crepitar da pena no papel, e desse cheiro tão especial que a escrita, afinal,  tem... Ah tem !...


( REVISADA EM 2009 )



4 - NORTE DE POETA




Não sei se acontece com toda a gente, mas, comigo, sempre acaba por chegar um momento em que as palavras ficam menores do que eu preciso, e tudo o que escrevo parece nunca chegar perto do que queria dizer realmente, ou a realmente fazer-lhe jus.

Com isso, por sorte, o mundo continua longe de ter descrições definitivas para a maior parte das coisas, o que, convenhamos, é um privilégio.

Por sorte maior ainda, e desejavelmente com mais sucesso que eu, os poetas podem continuar o seu trabalho fantástico de tornar visível a todos a beleza de coisas  que, sem eles, tantas vezes não passariam de trivialidades e lugares-comuns.

Mas, no meu caso, da mesma forma que atravesso momentos em que  as palavras parecem sempre ficar aquém do necessário, também atravesso outros em que sinto que elas tomam o freio nos dentes e, numa correria difícil de controlar, saem por aí em ganhos de eficiência. De tal forma que parecem aumentar tanto os seus significados possíveis, que novas portas, para novas idéias, se abrem como convites - a mais e mais palavras...

A coisa fica ainda pior quando se torna visível o silêncio dos outros, quando um sub-reptício bocejo acontece, ou quando uma mirada disfarçada ao relógio revela uma mal contida ansiedade por espaços mais abertos, capaz de, por si mesma, gerar desatenções e menores cuidados. Vale, então, pesar o que digo e o que me é dito, e avaliar reciprocidades.

Essa é a hora em que preciso parar,  redefinir rumos,  avaliar a isenção com que me avalio. Nasce assim o momento frágil, sensível ao beijo como ao látego, em que os caminhos tantas vezes percorridos, são postos em questão, e torna-se realmente necessário definir como seguir em frente, e de que maneira.

E se procuro me arrepender o menos possível do que digo ou faço, também não é menos verdade que necessito monitorar-me, aferir-me com freqüência, e creio até ser visível na minha escrita o cuidado com que guardo um pouco de tempo para mim mesmo, de vez em quando, e me reciclo, me recomponho, entro em faxina, ou, simplesmente, me encaro com alguns cuidados, por detrimento inevitável ao tempo e aos cuidados que, normalmente, dedico ao quotidiano e aos outros.

Frequentemente, nesta busca constante, descubro com agrado que já estava no meu rumo, fosse ele qual fosse, e que posso perseverar nele até que algo surja em contrário e mude o meu norte. Outras vezes, descubro que não, e que existe um o necessário ajuste – festivo, algumas vezes, sofrido e desagradável outras tantas.


Em todas elas, óbviamente, tem de prevalecer o homem, primeiro. O possível poeta, depois. E algum vago afastamento de permeio aos dois.


( 2008. REVISADA EM 2009 )




3 - CHOCOLATE




Eu vi quando a gota de chocolate se formou, no bolo que ela acabara de morder, à minha frente, do outro lado da mesa.

Deslizou para o canto da boca, devagarinho, um traço castanho riscando o vermelho brilhante do baton. De mãos ocupadas, a desconhecida procurou limpá-la com uma lambida engraçada.
Vendo-me a observá-la, encolheu a língua e ficou muito vermelha, enquanto a gota prosseguia desenhando o seu caminho castanho pelo queixo dela abaixo.
Instintivamente, peguei num guardanapo de papel e tentei impedir o pior, mas não deu tempo, e a gota de chocolate escorreu até que, finalmente, pingou para dentro da sua camisa branca, alastrando por debaixo dela, escurecendo, e lentamente desenhando um seio...

Então, eu percebi que ela me olhava, olhando para ela, e , confesso, foi a minha vez de ficar sem graça. Mas não havia mais o que fazer ... E, sem outra saída, procurei sorrir, algo encabulado, de guardanapo na mão à altura do seu queixo, olhando aquele seio de chocolate que se revelava.Foi nesse momento que os seios dela se empinaram e pareceram aumentar de volume, captando definitivamente a minha atenção.

Quando a olhei nos olhos, já um brilho irreverente, divertido, substituíra a anterior expressão de embaraço por uma outra totalmente diferente, de puro desafio feminino.Rimos os dois. Conversamos muito, nessa tarde, e comemos vários bolinhos de chocolate, talvez na esperança de que mais alguma gota nos aproximasse...

Acabámos amigos, rindo bastante, e quando saímos para a rua fria, lá fora, juntos, eu levava na mão uma caixa cheia de bolinhos de chocolate, ainda quentinhos. E no peito, toda a esperança do mundo.

Agosto, 2007



2 - DESENCONTRO




Costumava sentar-se  em um pedregulho enorme, mais alto que o muro do jardim, e dali, solitáriamente, observar o final do dia, vendo o sol rodar por entre as árvores até sumir completamente, lá longe, por detrás do mar.

De lá, olhando para baixo, podia ver o velho jardim abandonado. Nesse dia, sentiu-o diferente.

Até o regato que o cruzava, já não era a mesma velha presença de sempre, triste e murmurante, lúgubre contador de  velhas histórias, contadas e recontadas durante dias e noites sem fim.

Imediatamente notou a presença  de uma mulher e, do lado de fora do muro, um homem. Não querendo ser visto, ficou muito quieto,  condenando-se a presenciar algo a que não queria assistir, tornando-se um espectador involuntário de um quotidiano que não era o seu.

Aos poucos,  a luz dourada do final da tarde e  o insólito da situação criaram um momento especial, um momento mágico, que o levou a identificar-se com esses dois estranhos que observava.

Ela, extasiada, parecia sentir pela primeira vez a presença amiga do regato bordado a prata, e aqueles doces gritos de vida que eram as flores, a dádiva que o mundo do belo lhe oferecia em cada folha amarela e solta, rodopiando no ar até cair a seus pés.

E os sons, todo esse mundo inebriante dos sons, parecia apontar para coisas ignoradas, trazendo até ela cantigas de amigo no murmúrio das águas, carícias no suave hálito do vento.

Tudo, de uma forma absoluta e irredutível, parecia conduzi-la para dentro de si própria, para formas insuspeitadas de volúpia e ternura, para sensações e necessidades que  não sabia entender.

Sentada junto à água espelhada, receando ter-se atrasado mas esperando ainda, aproveitando o silêncio do lugar, assistia fremente e angustiada à passagem do tempo, vendo as flores que o regato transportava de vez em quando, trazidas já do outro lado do muro ao fundo do jardim, sob o qual as águas pareciam nascer...

E do outro lado desse muro, o homem. Mago sem cartola nem diploma, em pé, absorto, segurando um cigarro apagado entre os dedos, olhava o relógio distraidamente, certo de ter chegado demasiado cedo.

Tenso, encostado a uma árvore tombada junto do regato, e como que marcando os minutos, lentamente estendia um braço para trás de si e, colhendo uma flor, atirava-a para a água  e seguia-a com os olhos, observando o seu deslizar lento – demasiado lento – até ela desaparecer por baixo do muro que ele, pouco depois, cheio de incertezas, saltaria.

De ambos os lados do muro, a tarde conivente esvaía-se preguiçosa.  


(REVISADA EM  2008 )

1 - PARALELOS





Conheciam-se havia uma vida inteira.

O entrelaçamento do dia a dia  tinha-os levado a conhecerem-se bem – uma espécie de destino que lhes misturava as vidas, fazendo com que tropeçassem um no outro com freqüência, nos mesmos acontecimentos mundanos, nas idas ao cinema, nas praias, nos choques de opiniões.

Se tal proximidade acidental não existisse, provavelmente procurar-se-iam e envolver-se-iam em uma amizade que, em termos práticos, nada acrescentaria às suas vidas.

Nenhum receava expor-se perante o outro. Coexistiam na profissão, conhecendo-se mutuamente os pecados e as glórias, os triunfos e os desânimos. Entre si, competiam até um pouco, de uma forma que ambos consideravam salutar.

Tinham tido algumas namoradas em comum, não lhes importando realmente quem as seduzira primeiro, ou quem primeiro as perdera. O seu diálogo sempre fora facilitado por um conhecimento comum daquilo sobre que dialogavam. E dialogar era algo que raramente lhes acontecia, algo que com facilidade dispensavam por desnecessário.

Cada um deles pensava no outro como sendo esse o mais forte, confiava implicitamente na sua proteção, e chamava-o na hora em que a sua ajuda era necessária. E nunca nenhum deles faltou ao outro, deixando-o desprotegido ou só, embora freqüentemente sentissem o impacto das suas vontades, em choque uma contra a outra, demarcando uma fronteira esponjosa, elástica, uma terra de ninguém onde se entendiam na oposição.

Sempre foram tão próximos na força, tão iguais, mas tão separados nas capacidades, tão diferentes nos métodos e nas tendências, que, quando a vida lhes exigiu  que sobrevivessem separadamente, descobriram com amargura, pela primeira vez, que um deles tinha uma nítida vantagem sobre o outro.

Era mais apto, menos atingido pelas arestas espinhosas da vida e pelas imposições do mundo dos outros.

Assim, em vez de se separarem, foi com a naturalidade de sempre que, dos dois, esse assumiu uma posição de predominância, num acordo confortável que lhes permitiu continuarem juntos - um deles ao leme das suas vidas, mais apto nos aspectos práticos das coisas, e o outro menos visível, mais protegido e mais livre.

O tempo foi passando, e eles mantiveram-se juntos e separados como sempre.

Ainda hoje, o acordo tácito prevalece, o mais lúcido dos dois  timonando as suas  vidas.

O outro morreu para o mundo, cobrindo-se de anonimato até obter a liberdade de ser um qualquer, como toda a gente. Os que lhe chamavam poeta já o esqueceram, perdidos nas incertezas de outras convicções.



De ambos, sobrevivi eu. E uma certa ironia visível, por trás dos olhos cansados, a que alguns chamam cinismo.



ESCRITA EM 1971 . REVISADA EM 1998 .